sábado, 10 de abril de 2010

Entrevista com David Soares - autor de "O Evangelho do Enforcado"

David Soares é autor dos romances O Evangelho do Enforcado, que conta a história dos famosos painéis de São Vicente de Fora, Lisboa Triunfante, uma história mágica sobre a capital portuguesa, e A Conspiração dos Antepassados, sobre o encontro do poeta Fernando Pessoa com o mago inglês Aleister Crowley (Saída de Emergência: 2010, 2008 e 2007).
Publicou três livros de contos, cinco álbuns de banda desenhada e um livro de ensaio literário sobre banda desenhada. Na sua carreira como autor de banda desenhada (publicado em França e em Espanha), foi premiado com dois troféus para Melhor Argumentista Nacional e uma bolsa de criação literária, atribuída pelo Instituto Português do Livro e das Bibliotecas e pelo Ministério da Cultura.
Colabora, regularmente, em diversas antologias literárias, relacionadas com o género Fantástico e é considerado pela crítica especializada nesse género como sendo o melhor autor português de literatura fantástica. Em 2009, viu um excerto do seu romance Lisboa Triunfante ser publicado na revista literária polaca Lampa, uma edição do Instituto Camões na Polónia, junto de excertos de outros autores portugueses como José Saramago, Gonçalo M. Tavares e Lídia Jorge.
Também trabalha como tradutor, tendo assegurado a tradução de obras de autores como Alan Moore, Jack Dann e Philip K. Dick. Escreve quase todos os dias no weblog: cadernosdedaath.blogspot.com.

David Soares, autor de "O Evangelho do Enforcado", conseguiu dispensar alguns minutos da sua preenchida agenda para responder a algumas perguntas do "Páginas Desfolhadas":

Páginas Desfolhadas: De onde lhe surgiu a sugestão para a loucura de Nuno Gonçalves? Algo que tenha descortinado por entre as pinceladas dos Painéis de S. Vicente?
David Soares: A sugestão para escrever sobre um pintor louco foi-me dada pela leitura do livro "Mind Hunter: Inside the FBI's Elite Serial Crime Unit" de John Douglas e Mark Olshaker, no qual Douglas diz que «se queremos compreender o artista é preciso olharmos para o quadro». Esta frase de Douglas é uma alusão à prática de estudar os métodos dos crimes em série para se perceber como funcionam as mentes dos criminosos, mas a alegoria, baseada na arte, estimulou-me a imaginação e deu-me a ideia de escrever sobre um pintor psicopata. Sempre quis escrever sobre os Painéis ditos de São Vicente e, também, sobre a Idade Média portuguesa. A ideia que me foi sugerida pela frase de Douglas serviu de eixo de ligação a ambos os temas.

PD: Apesar desta sua obra não ter como objectivo a representação fiel dos acontecimentos daquela época, pretendia lançar alguma luz sobre todo o mistério  que rodeia os Painéis?
DS: Quis interrogar algumas coisas relacionadas com os painéis e o mundo medieval português, mas não me interessou encontrar respostas para os mistérios criados pelos académicos em volta dos Painéis ditos de São Vicente, nem procurar a identidade das figuras retratadas. Para contar a minha história uni duas teorias existentes sobre essa obra artística: a "fernandina" de José Saraiva e a de Theresa Schedel de Castello Branco, que eu chamo de "dioscoriana". A primeira diz que a personagem retratada duas vezes no políptico de Nuno Gonçalves é o Infante Santo D. Fernando, morto em Fez e pendurado de cabeça para baixo das ameias da muralha dessa cidade africana, enquanto que a segunda avança com a hipótese dessa personagem duplicada ser, na verdade, o retrato de dois santos padroeiros de Lisboa: os gémeos São Crispim e São Crispiniano. De todas as teorias que li sobre a identidade da personagem central dos Painéis de São Vicente estas foram as que mais me atraíram, em virtude da elegância com que são propostas, mas não avanço com a ideia de que são mais correctas ou verdadeiras que as outras.

PD: Durante a narrativa, surgem situações que podem ser consideradas algo chocantes, descritas de forma bastante intensa. Não teme afastar alguns leitores?
DS: As situações chocantes, sejam elas quais forem, fazem parte da história e servem propósitos específicos. Acho que os artistas não devem cercear-se a si próprios, porque a maioria das pessoas que não são artistas já se esforçam demasiado para cerceá-los. Enquanto escritor sinto diversas responsabilidades e de várias ordens: a responsabilidade de escrever bem, por exemplo, e de contar uma boa história, assim como a responsabilidade de levar o meu trabalho a sério. Isso só pode ser cumprido se eu me livrar de instintos auto-censórios. Penso sempre: "Porque é que mostrar isto é importante?" ou então "Devo passar ao lado disto?" São perguntas muito importantes, porque enquanto escritor eu também tenho a responsabilidade de pensar de modo diferente, de ir a lugares onde os outros não são capazes de ir. É preciso coragem e audácia autoral.
Acho que hoje em dia vivemos numa idade em que nada é suposto ter consequências, mas o horror tem consequências. A dor tem consequências. As palavras têm consequências. Quando era adolescente tirei uma rapariga da linha do comboio: ela levou com um comboio de raspão na cabeça e sangrava abundantemente. Peguei nela ao colo e deitei-a na plataforma de embarque. Ainda me lembro do choro dela... Um choro fininho, envergonhado. O que estou a tentar dizer é que quando se aprende a distinguir a violência verdadeira da fictícia, o que pode muito bem acontecer com uma experiência análoga à que acabei de descrever, é impossível não achar ridículas certas acusações que se fazem à violência ficcional de certas obras. Gosto de histórias violentas, de histórias negras. Acho que são saudáveis. Acho que as histórias que nos dão uma imagem asséptica do mundo é que são perigosas.

PD: Nota-se que se dedicou ao estudo de alguns dos costumes da época. Salienta-se algum assunto que se tenha revelado mais interessante estudar e que lhe tenha dado um gozo especial investigar?
DS: Todos os assuntos que estudei para escrever "O Evangelho do Enforcado" foram igualmente interessantes. Neste momento não sou capaz de destacar um, em particular.

PD: "O Evangelho do Enforcado" constitui um trabalho de quantos anos? Por estar organizado por várias camadas, necessitou de reescrever várias vezes?
DS: Não o reescrevi. Excepto os acertos diários, que se fazem ao reler o que se escreveu no dia anterior, a versão que foi editada é a única. Cortei algumas passagens, contudo: tenho doze páginas com cenas cortadas, material que, embora interessante, prejudicava o ritmo que eu queria dar à história. Escrever "O Evangelho do Enforcado" demorou cerca de oito meses, talvez um pouco menos. Isto sem contar com o período prévio de investigação e recolha de informação. Escrevo depressa e como, felizmente, não sofro de bloqueios criativos de espécie alguma não tenho dificuldades em colocar uma história no papel quando quero. A segurança que eu sinto enquanto escritor advém muito da bagagem cultural dada pela leitura. Quanto mais se lê e se escreve, melhor se escreve e melhor se lê. Procuro não perder tempo com coisas inúteis e tento escrever o máximo de horas diárias que conseguir.

PD: Para quem quiser formar a sua própria teoria sobre os Painéis de S. Vicente ou mesmo a Peste Negra, que livros aconselha?
DS: Aqueles que vêm listados nos apontamentos e bibliografia de "O Evangelho do Enforcado".

PD: O seu trabalho em banda desenhada pode influenciar de alguma forma a sua escrita?
DS: Quando é feito de uma forma séria e rigorosa, escrever banda desenhada é muito difícil. Ou seja: escrever banda desenhada não é preencher os balões deixados vazios pelo desenhador. É imaginar uma história, de modo visual e narrativo, e escrevê-la vinheta a vinheta, prancha a prancha, descrevendo o que se passa em cada imagem, mesmo que as imagens não tenham diálogos, como é evidente. É algo que demora bastante tempo a ser feito e só com muita experiência é possível imaginar uma narrativa sequencial que funcione de modo interessante, porque o ritmo é algo que tem muito peso numa banda desenhada - que é uma linguagem narrativa pouco económica, porque contar qualquer coisa em banda desenhada gasta muitas vinhetas. Nesse sentido, a capacidade que eu tenho para imaginar uma história de modo visual é uma poderosa ferramenta para desenvolver personagens e ambientes num romance, mas as ambas as linguagens, embora pertencentes ao espectro narrativo, têm exigências diferentes. Acho que escrever banda desenhada é mais difícil que escrever um romance e só quem nunca escreveu uma banda desenhada, a sério, é que pode duvidar ou achar o inverso. Mas escrever um romance não é fácil e a prova disso é a grande quantidade de maus romances que são publicados todos os dias.

PD: Apresenta um estilo de escrita bastante próprio. Entre todos os autores que o possam ter influenciado, algum que queira salientar?
DS: Não tenho nenhum autor, em especial, que me tenha influenciado: existem vários autores, que trabalham em diversas áreas, cujo trabalho me influenciou de modo heterogéneo, mas não me sinto devedor de nenhum deles. Quanto mais se lê e descobre coisas, mais difícil é responder a essa pergunta - é como querer escoar um rio inteiro por um funil. De um ponto de vista técnico reconheço que existem vários elementos, presentes nas minhas obras, que fazem parte do meu estilo e com os quais a minha voz autoral se sente confortável para falar. Cada vez me convenço mais que não existe verdadeira experimentação na literatura: ou melhor, aquilo que se considera experimental em literatura tem sempre uma natureza tosca, imperfeita. Se uma coisa funciona, por mais ousada, inesperada ou insuspeita que seja, não é experimental.

PD: O que podemos aguardar agora (com bastante ansiedade) de David Soares?
DS: Mais livros, claro! Estou a trabalhar numa fábula negra, ilustrada por mim, e também num livro de contos de horror. Ando a pensar num romance novo, cujo final já imaginei, mas ainda não sei se o vou escrever para já. Talvez seja o meu quinto romance, pois a ideia precisa de amadurecer. Também tenho o projecto de escrever um novo livro de ensaio, sobre um tema que vou manter em segredo, por enquanto.

PD: Agradecemos imenso pelo tempo que nos disponibilizou. Se quiser aproveitar para deixar alguma mensagem aos nossos seguidores (que têm demonstrado um enorme interesse sobre esta sua nova obra) esteja à vontade. Felicidades e uma Páscoa feliz!
DS: Obrigado pelo convite para a entrevista. Leiam muito e pensem naquilo que leram. Sejam cépticos.

2 comentários:

  1. Tendo acabado de ler esse livro há muito poucos dias, adorei ler esta entrevista. Parabéns tanto pelas perguntas como pelas respostas. Aguardo por todos esses novos trabalhos de David Soares. A partir de agora tenho de estar mais atento à sua obra. ;)

    Boas leituras!

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  2. Olá Tiago:

    Ainda bem que gostaste! Talvez para a próxima voltemos a tentar pedir aos nossos seguidores que colaborem com perguntas. É sempre uma excelente maneira de conhecer melhor os autores que nos apaixonam...
    E claro que também estamos ansiosos por novas obras de David Soares!

    Boas leituras!

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