Em oito minutos e meio Sergei Krikalev ultrapassa a atmosfera e perde a gravidade; Tânia senta-se à espera; o vizinho de Krikalev constrói uma ponte para chegar ao Espaço mantendo os pés assentes na Terra; a Lua cai numa praia cheia de sapos; a União Soviética desmorona-se; e José, deitado numa cama de hospital, conclui que o que lhe faz falta não são as pernas que perdeu mas as impressões digitais dela: pede um coração artificial e faz restart. Como está cientificamente provado que não nos podemos lembrar de mais do que sete coisas ao mesmo tempo, Tânia esquece José. Sergei Krikalev pensa em chorar mas não vale a pena: no Espaço as lágrimas não caiem, só causam chatices. E há oito minutos e meio atrás? O melhor é fazermos rewind para avançar na história.Esta é uma história real que tem por fundo a colonização, a guerra colonial e a descolonização – e tem por centro o 7 de Setembro de 1974, dia em que os brancos extremistas de Lourenço Marques assaltaram o Rádio Clube de Moçambique na tentativa de impedir a promulgação dos Acordos de Lusaka.
Tais acordos, assinados horas antes por representantes de Portugal e da Frelimo, estabeleciam os mecanismos da transferência de poderes que levariam à independência de Moçambique – o que certos brancos não aceitavam.
O assalto à Casa da Rádio, que durou três longos dias, foi efectuado com a cumplicidade da Polícia e o desnorte das cúpulas das Forças Armadas em Lourenço Marques, com Spínola mexendo os cordelinhos a partir de Lisboa. O resultado foi trágico: largas centenas de mortos negros, algumas dezenas de mortos brancos, ódios raciais à solta, medo branco à flor da pele, uma descolonização envenenada.
Na verdade, o que então se passou na capital moçambicana foi um crime sem perdão – sentindo o seu mundo de privilégios a ruir, um punhado de brancos extremistas lançou-se numa aventura sem sentido e condenada ao fracasso, arrastando emocionalmente milhares de compatriotas que, desinformados e impreparados politicamente, naquele contexto eram presa fácil de qualquer patrioteirismo rasteiro.
Num primeiro momento, os assaltantes viveram uma euforia balofa, difundido via rádio desejos e boatos como realidades – com os seus membros mais exaltados entregando-se, ao som do Rádio Clube de Moçambique ocupado, a uma autêntica orgia de sangue negro nas ruelas sem esgoto do caniço.
Porém, ao terceiro dia, o medo que se havia apoderado da população negra, que ouvia a rádio apelando à intervenção sul-africana e rodesiana, transformou-se em levantamento geral sob a forma de uma marcha de catanas sobre a cidade branca.
O feitiço virara-se contra o feiticeiro. Chegara a hora da população branca ser tomada pelo medo, primeiro, e pelo pânico, depois. Polícia incluída, quando as suas comprometidas chefias descobriram, tarde demais, que não tinham capacidade para enfrentar muitos milhares de negros em fúria.
Ao mesmo tempo, muitos daqueles brancos perceberam que tinham um pesado preço a pagar: a fuga, o adeus doloroso a uma terra amada mas onde só aceitavam viver com as regras iníquas que sempre os favoreceram e permitiram que, de forma abjecta, vivessem à custa da exploração do negro.
Fugiram - ironia da vida! - com o peso de uma última humilhação: a cidade branca só se salvou graças à intervenção da Frelimo e de um seu militante que, à pressa, PSP e Exército fardaram e levaram aos microfones do RCM para transmitir a senha que faria parar os negros em fúria.
Com este haraquíri, talvez alguns dos brancos mais extremistas tenham então compreendido que nunca houve, nem podia haver, uma colonização justa – e muito menos uma descolonização perfeita. Mas poderia ter sido bem melhor do que foi se não se tivesse criminosamente lançado gasolina na fogueira.
domingo, 23 de fevereiro de 2014
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